“Sempre conservei uma aspa à esquerda e outra à direita de mim”. A frase, emblemática da genialidade de Clarice Lispector, ressoa com uma potência desconcertante na era do frenesi digital. Em um tempo obcecado pela autoexposição, pela curadoria meticulosa de uma identidade virtual, a escritora nos convida a uma reflexão profunda sobre a natureza do “eu” e a nossa relação com a própria imagem. A sua literatura, um mergulho nas profundezas da alma, antecipa de forma assustadora a crise de autenticidade que assola as redes sociais, onde a necessidade constante de ser visto e validado parece nos afastar cada vez mais de quem realmente somos.
A sensação de deslocamento, de se observar a partir de uma perspectiva externa, é um tema recorrente na obra de Clarice. O “Como se não fosse Eu” que acompanha a sua reflexão sobre as “aspas” que a delimitam, ecoa a experiência de muitos no universo online. Criamos avatares, personas cuidadosamente construídas para o olhar do outro, e nessa busca incessante por aprovação, corremos o risco de nos tornarmos espectadores de nossas próprias vidas. A fotografia, nesse contexto, assume o papel de um “retrato côncavo”, como sugere a indagação inicial. Ela não apenas captura uma imagem, mas também revela uma falta, uma ausência. O que não está no enquadramento? O que a pose esconde? O que o sorriso forçado silencia? A cada postagem, a cada imagem editada à perfeição, solidificamos um retrato que, paradoxalmente, nos esvazia.
O furor atual das redes sociais, com sua demanda por uma performance ininterrupta do “eu”, gera uma ansiedade paralisante. A validação, antes buscada em relações interpessoais genuínas, é agora quantificada em curtidas, compartilhamentos e comentários. Essa métrica da aceitação nos aprisiona em um ciclo vicioso de comparação e auto-objetificação. A vida real, com suas nuances, imperfeições e momentos de introspecção silenciosa, torna-se um fardo a ser evitado, um hiato entre as postagens. O tédio, tão caro a Lispector como um portal para o autoconhecimento, é agora preenchido com o scroll infinito, um frêmito constante que nos impede de ouvir a nossa própria voz interior.
A obra de Clarice Lispector nos oferece um antídoto para essa superficialidade programada. Seus personagens, em seus fluxos de consciência, em suas epifanias cotidianas, nos ensinam a importância de habitar o nosso próprio corpo, de sentir o “instante-já”, de nos conectarmos com a nossa “vida íntima”. Eles nos lembram que a verdadeira existência não é aquela que se exibe, mas aquela que se sente, que pulsa no silêncio, que se revela nos momentos de vulnerabilidade, longe dos holofotes digitais.
Talvez o grande desafio do nosso tempo seja, justamente, o de remover as aspas que nos enquadram, que nos definem a partir de um olhar externo. É preciso coragem para abraçar a nossa incompletude, a nossa falta, não como um vazio a ser preenchido pela aprovação alheia, mas como um espaço de liberdade para sermos, simplesmente, nós mesmos. A literatura de Clarice Lispector, com sua prosa visceral e sua busca incansável pela essência do ser, continua a ser uma bússola essencial para navegarmos a complexidade de um mundo que nos convida, a todo instante, a nos ausentarmos de nós mesmos. Ela nos incita a fechar as telas e a abrir os olhos para o espetáculo, por vezes assustador, mas sempre autêntico, da existência real. Já amassou seu pãozinho hoje?