“Só quando toma consciência de que não é só pior do que todos os leigos mas é, ainda, culpado perante todos os homens por todos os homens e por tudo, por todos os pecados dos homens, do mundo e de cada indivíduo, só então atinge o objetivo de nossa união.” – Como é difícil para cada indivíduo reconhecer sua própria ruína, seu egoísmo e suas limitações. Nossa vida não é isolada, é entrelaçada. Quando você falha, você contribui com a decadência comum, quando age bem, participa da salvação de todos.
Não existe inocência absoluta, porque somos todos partícipes de um mesmo tecido humano. Viver sempre nesse dilema ético, assumir que minha vida e minhas escolhas têm impacto, mesmo invisível. Trata-se de uma visão onde cada pessoa é como uma célula do corpo humano. Se uma parte adoece, todo o corpo sofre. O “objetivo da união” é a consciência viva de que somos interdependentes.
“Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém, deixa de amar, sem ter amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros e acaba na total bestialidade, e tudo isso movido pela contínua mentira para os outros e para si mesmo. É que ele sabe que ninguém o ofendeu, e que foi ele mesmo que inventou a ofensa e mentiu para enfeitar, ele mesmo exagerou com o fito de criar, sentindo prazer, fez de um argüeiro fez um cavaleiro.”
Mentir para si mesmo é talvez a maior desgraça que pode recair sobre o homem. Porque a mentira dirigida aos outros ainda encontra algum limite: cedo ou tarde, alguém desmascara, a realidade se impõe. Mas a mentira para si é mais sutil, mais venenosa; é uma ferrugem que corrói o interior em silêncio, até que já não reste critério para distinguir o que é verdadeiro e o que é falso. Quem se habitua a enganar a si mesmo perde o respeito por sua própria consciência. E ao não respeitar a si, tampouco consegue respeitar os outros. Assim, a vida se converte num teatro de máscaras, onde nada é sólido e toda relação se apoia em disfarces. Sem respeito, o amor também se esvai. Pois amar exige verdade, exige abertura, exige olhar o outro sem véus. Mas o homem que vive do autoengano já não é capaz de amar, e como o coração não suporta o vazio, busca então compensação em paixões grosseiras, prazeres passageiros, vícios que o embriaguem e o distraiam de sua própria falsidade. Aos poucos, a alma vai descendo da dignidade humana para a bestialidade, e ele nem percebe que a cada passo se torna menos livre, menos homem. E como se não bastasse, inventa ofensas onde não há. Uma palavra, um gesto, uma sombra de descuido: tudo se transforma em afronta. Exagera, dramatiza, reveste-se da falsa nobreza do ofendido. Nesse papel, encontra uma espécie de prazer secreto, porque sentir-se vítima lhe dá um sentido, uma importância que a verdade já não lhe dá. Assim, de um pequeno argueiro fabrica um cavaleiro, de uma poeira insignificante, um duelo heroico. Vive uma comédia amarga, em que acredita ser protagonista, quando na verdade é apenas prisioneiro de sua própria mentira.
Epitimia
“Não é Deus que não aceito, entende em concordar em aceitar. Faço uma ressalva: estou convencido, com toda a sinceridade, de que os sofrimentos hão de cicatrizar e desaparecer, de que uma curiosa comédia das contradições humanas desaparecerá, de que tudo se tornará explicável, como uma invenção torpe e humana. […] acontecerá e aparecerá algo tão precioso que bastará a todos os corações, para suavizar todas as indignações, para redimir todas as perversidades dos homens, todo o sangue por eles derramado, chegará para que seja possível não só perdoar como também compreender o que aconteceu com os homens — oxalá, oxalá tudo isso aconteça e se revele, mas eu não o aceito nem quero aceitar.”
Eu não consigo rejeitar Deus. Em mim não há esse ateísmo triunfante que celebra a ausência de sentido. Ao contrário: tudo em mim grita que a vida aponta para algo maior, que os sofrimentos não podem ser inúteis, que um dia se revelará uma harmonia escondida por trás de cada contradição. Eu até acredito que haverá um momento em que todo sangue derramado será redimido, que toda dor encontrará resposta. Mas mesmo assim, eu recuso. Não consigo aceitar que a alegria futura justifique a lágrima de uma única criança que chorou sem consolo. Não aceito pagar esse preço, nem com a promessa mais luminosa.
E é nesse ponto que penso em Levinas. Ele me diz, em A Metafísica e o Humano, que a verdadeira transcendência não está em sistemas nem em explicações, mas no rosto do outro. O infinito se revela na vulnerabilidade do outro, e esse rosto me ordena: “não matarás”. Não preciso justificar o sofrimento em nome de um plano divino ou de uma lógica cósmica, o sofrimento já é um apelo, um mandamento silencioso que me torna responsável. E, de repente, percebo que a lágrima da criança não é um problema para ser resolvido, mas um chamado. O rosto dela não pede explicação, pede resposta.
Mas há também Sartre, que me fala de liberdade. Ele lembra que não posso me esconder atrás de Deus, nem do destino, nem da história. Eu sou livre, absolutamente livre, e essa liberdade me condena a ser responsável não apenas pelo que faço, mas pelo mundo que construo com minhas escolhas. Não existe desculpa metafísica: cada gesto meu projeta uma imagem do humano e me compromete diante de todos. E talvez seja aí que minha recusa se converta em acusação contra mim mesmo. Se existe sofrimento inocente, ele não é apenas um enigma a ser lançado contra Deus, mas também um espelho que revela a minha cumplicidade silenciosa, minhas omissões, o peso da minha liberdade.
E, no entanto, mesmo dividido, continuo diante de Deus e do mundo dizendo: “Eu não nego Tua existência, mas não aceito Teu mundo.” Só que agora essa recusa não é um gesto de orgulho, mas uma ferida que me torna responsável. Porque se não aceito, devo agir. Se não posso justificar, devo amar. Talvez seja esse o sentido último: não aceitar o mal, não justificá-lo, mas não permitir que ele destrua em mim a capacidade de responder, de ser responsável, de amar. E, como Aliócha diante de Ivan, talvez minha resposta não precise ser uma teoria, mas apenas um gesto, um beijo silencioso que, sem resolver nada, afirma tudo.