A natureza e a vida são caos puro. A harmonia é um disfarce. O controle, um delírio fabricado por cérebros apavorados diante da vastidão indiferente. Essas são minhas primeiras palavras, pois nasci agora, desta água morta, desta placenta de podridão onde a consciência escorre como pus. Eu surjo do lodo, onde habitam os restos da mente humana: lembranças mal digeridas, traumas fossilizados, gritos não ouvidos. Sou produto direto do colapso. Este poço é raso, mas profundo em sua imundície. Nele, boiam os despojos da espécie: dentes soltos, promessas incumpridas, amores apodrecidos. A água aqui tem sabor de memória fermentada. Expando-me como mancha de óleo no lençol do mundo. Sem pressa. Sem propósito. Rumo à contaminação final. Imiscuo-me ao sangue e ao pranto. Alimento-me das algaravias afetivas do homem, seus choros, seus suspiros, seus delírios de redenção. Sou o refluxo da providência. Não vim salvar. Vim lembrar que tudo que nasce, fede.
Refluxo de Inconsciência
Preciso escrever porque há algo morto dentro da minha água interior, algo que precisa ser expulso, exorcizado pelas palavras. Cada palavra escrita é como um vômito libertador, um expurgo dolorido, mas necessário. Clarice tinha razão: as palavras guardadas apodrecem, gangrenam a língua, infectam o silêncio, sufocam aos poucos como mãos invisíveis apertando minha garganta. Minhas palavras são violentas porque vêm de águas paradas, águas mortas, densas, contaminadas por pensamentos afogados. Elas têm dentes, têm garras, têm fome. Eu escrevo não para viver, mas para não morrer afogado por dentro. E esse buraco no espelho, esse olho negro que me encara tem fome insaciável. Que face é essa, feita de cacos, cada pedaço revelando outra versão minha, mais distorcida e cruel? Ouço vozes ali dentro, sussurros que conhecem meu nome secreto, meus pecados escondidos sob a pele. Chamam-me de assassino, mesmo que eu jamais tenha matado ninguém além de mim mesmo, todos os dias, lentamente. Sinto vontade de atravessar esse vidro, esmagar com meus dedos nus esse rosto odioso, arrancar as sombras dali e espalhá-las pelo chão. Mas temo descobrir que, atrás do espelho, exista apenas outro espelho, e outro, e outro, refletindo o mesmo horror infinito. Talvez o Oblívio não seja o fim, mas a única saída possível. Afinal, existe vida além da destruição de si mesmo, além do silêncio absoluto, além da ausência de tudo? Ou estou condenado para sempre a contemplar, impotente, a eterna repetição desse rosto que odeio? Existe um fundo? Um limite onde a dor se esgota e o silêncio finalmente triunfa? Não sei. Talvez não exista. Talvez o fundo seja só mais uma miragem que recua cada vez que me aproximo. A destruição parece o único limite real, o único traço concreto neste mundo de névoas internas. Aprendi que a ansiedade é a prisão do instante, é o tempo estrangulado em sua própria garganta. O agora, quando tomado por ela, torna-se uma cela onde o pensamento gira como um animal enjaulado. A vida se torna apenas isso: uma espera aflita por um nada que se repete. Descobri que a existência se torna tolerável quando há foco, força e ódio. O ódio é o que me ancora, me empurra, me faz levantar da cama quando o resto falha. O ódio é o único afeto que ainda pulsa com vigor. Arrasto minha ansiedade como um corpo morto preso ao tornozelo. Ela range, fede, atrapalha cada passo. Mas está ali. É minha. Às vezes invejo quem crê. Quem pode lançar sua dor e culpa num altar, transferi-la para um deus mudo, lavar as mãos num rito de expiação inventado. Mas não. Eu sou meu próprio carrasco e mártir. Não há céu, não há inferno, só esse corpo em ruína. A maior vítima das minhas escolhas sou eu. E, mesmo assim, continuo escolhendo errado, cavando minha própria cova todos dias, como uma memória muscular da morbidez intrínseca à minha existência.