O Manto e a Fuligem

A descida não começou com fogo e sim com silêncio. Um silêncio denso, pesado, que engolia a luz do mundo que ficava para trás. Ao lado dela, Miguel não precisava falar, sua presença era um farol de ouro branco, e a luz da sua espada cortava o negrume como a quilha de um navio corta o mar morto. O primeiro ruído foi um zumbido baixo, a vibração de um sofrimento tão antigo que já se tinha esquecido da sua própria causa. Era o som de um milhão de dentes a ranger em uníssono, tão fundo que se sentia nos ossos antes de se ouvir com os ouvidos.

Assim veio o ar. Pesado, oleoso, agarrava-se à garganta. Trazia consigo o cheiro de metal sobreaquecido, de enxofre a borbulhar nas entranhas da terra e algo mais doce e nauseabundo: o odor do desespero estagnado, de lágrimas que evaporaram há séculos e deixaram apenas o sal da amargura. Maria puxou o seu manto azul-celeste para mais perto, um gesto instintivo, como se o tecido pudesse filtrar a corrupção do ar.

Foi então que ela viu a fuligem. Não caía como a neve, suave e redentora. Eram flocos negros e gordurosos, que flutuavam no ar pesado, subindo das profundezas em vez de cair do céu. Pousavam em toda a parte. Um floco pousou no ombro dourado da armadura de Miguel e desfez-se, deixando uma mancha de escuridão. Outro, mais ousado, tocou a bainha do seu próprio manto. O azul, a cor do céu e da graça, ficou maculado com um ponto de noite. E depois outro, e mais outro. O seu manto, o véu que cobrira o sagrado, começava a ser bordado pela geografia do Inferno.

O calor aumentava a cada passo, um calor de chama viva, uma febre opressiva que emanava das próprias paredes de rocha úmida. Lá em baixo, no limite da luz de Miguel, as formas começavam a distinguir-se. Não eram ainda pessoas, apenas silhuetas contorcidas, massas de sombra que se moviam lentamente, como corais de um recife de dor. E o zumbido, agora mais perto, começava a desfazer-se em vozes individuais: um lamento agudo, um rosnar baixo, o choro seco de quem já não tinha mais lágrimas para derramar.

Maria não chorou. Os seus olhos, que viram o nascimento e a morte de Deus, absorviam tudo. Cada floco de fuligem no seu manto era uma alma. Cada onda de calor, um eco de uma escolha terrível. Ela continuou a descer, o seu azul-celeste a tornar-se cada vez mais cinzento, uma estrela cadente a mergulhar voluntariamente no coração da noite eterna, carregando o peso do céu no meio da fuligem do Inferno.

O caminho estreito de rocha abriu-se de repente, revelando uma costa de areia negra e vítrea. Diante deles estendia-se o lago. Não era um lago de água, era um poço de piche líquido que borbulhava lentamente, a superfície ondulava com o calor que vinha de dentro. Chamas negras e violetas dançavam sobre o líquido escuro, libertando um calor que não iluminava, sugando a própria luz que Miguel emanava.

Na superfície, centenas de almas debatiam-se. Agarravam-se umas às outras para se manterem à tona, arranhando, empurrando, num pânico eterno. Os seus rostos, visíveis sob o brilho sombrio, não estavam apenas contorcidos pela dor das queimaduras, mas eram máscaras de uma ambição que nem a morte apagara. Lutavam para chegar a uma margem que não existia, impulsionados pela mesma ganância e orgulho que os condenara. Por eles, o coração de Maria sentiu uma pontada de imensa piedade. Eram filhos perdidos numa luta fútil.

Mas o seu olhar foi puxado para o fundo. Através da superfície escura e translúcida, ela viu outros. Corpos que afundavam lentamente, graciosamente, numa dança macabra de rendição. Não lutavam. Não gritavam. Os seus braços e pernas moviam-se com a corrente lenta do piche, os cabelos a flutuar como algas mortas. Os seus olhos estavam abertos, mas vazios, como janelas de uma casa abandonada de onde a alma se retirou há muito tempo. Afundavam-se cada vez mais no breu, as suas formas a tornarem-se menos nítidas, a dissolverem-se na escuridão do fundo do lago.

Ela virou-se para Miguel, o seu silêncio uma pergunta mais pesada do que qualquer grito que ecoava naquele lugar. O Arcanjo não olhou para ela. O seu olhar estava fixo no lago, o seu belo rosto uma máscara de dever divino, impassível e terrível.

A voz dele soou na mente dela, desprovida de calor ou de frio, uma declaração de fato tão imutável como as estrelas. “Aqueles na superfície ainda se lembram do que perderam. Lutam. Odeiam. Desejam. A sua dor é o seu último elo com a vida.” Ele fez uma pausa, e a luz da sua espada pareceu vacilar por um instante. “Mas aqueles…” Ele indicou com um gesto quase impercetível as figuras que se afundavam. “Esses são os que se afogaram no seu próprio desespero. Olharam para o abismo da sua alma e aceitaram-no. Escolheram o vazio em vez da graça.”

A fuligem continuava a cair sobre o manto de Maria, cada floco uma memória de dor.

“E a esses,” a voz de Miguel baixou para um sussurro que era o som do fim de todas as coisas, “Deus esquece.”

O peso no coração de Maria tornou-se insuportável. Não era a dor do fogo, mas o frio absoluto daquele esquecimento. Uma alma podia arder por uma eternidade e ainda assim existir. Mas ser esquecida… era ser desfeita, apagada do livro da Criação. A cada floco de fuligem que tocava o seu manto, ela sentia o peso não de um pecado, mas de um universo que se apagava, esquecido para sempre. E a descida continuou.